Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo anulou dívida resultante de descumprimento do contrato entre duas empresas, sob a alegação de que o que fora avençado divergia da real intenção de uma das partes. A corte acolheu o argumento da empresa que foi demandada por não pagamento, que, por sua vez, invocou a ocorrência de reserva mental, disposta no artigo 110 do Código Civil.
Detalhes sobre o caso
No acórdão do TJSP, percebe-se a decisão fundamentada no aludido artigo do Código Civil, em que se determina que “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”. Dentro do que dispõe a lei, portanto, há a proteção ao contrato assinado, exceto se as partes estiverem cientes de que uma delas diverge dos termos expressos.
Ao redigir o artigo 110 do Código Civil, percebe-se o cuidado do legislador em, na ressalva, destacar o conhecimento das partes quanto à reserva mental. Dessa forma, a notabilidade do desejo divergente precisa ser provada pela parte que contesta o(s) termo(s) do contrato, algo que foi verificado no caso em voga.
Segundo destacou o relator do processo, desembargador Mauro Conti Machado, a troca de e-mails e mensagens entre as empresas denota condutas cientes da inverossimilhança entre o que está no contrato e o que era praticado pelas partes e a real intenção da devedora. O desembargador destaca, ainda, a má redação do contrato, mencionando tal fato na decisão em que ele atende o pedido da devedora de suspender o pagamento.
Aplicação da reserva mental
Antônio Junqueira de Azevedo, jurista de renome, ensina que, em face do conflito entre a “vontade verdadeira e a vontade declarada em um negócio jurídico”, emerge o problema a ser solucionado pelo Poder Judiciário. Para o autor, o direito brasileiro caminha no meio entre a teoria da vontade e a teoria da declaração de vontade, o que pode ser verificado, em termos positivistas, no artigo 110 do Código Civil, ora analisado. Nesse dispositivo, portanto, há a proteção ao que foi declarado, embora haja, também, a proteção à vontade interna diferente daquela declarada, desde que o destinatário do contrato esteja ciente da incongruência – consubstanciando-se em uma divergência de intenções.
Conforme destacado em artigo do portal Jus, de autoria de Luciana de Paula Assis Ferriani, a divergência volitiva não se confunde com vício de consentimento, embora, para Maria Helena Diniz, se existe vontade que não encontre correspondência no que o agente quer exteriorizar, o negócio jurídico será viciado. Assim, a doutrinadora citada chama a divergência intencional de vício social, ao passo que Nelson Nery, em sua definição, faz a ressalva de que a reserva mental não pode ser considerada uma mentira pura e simples, definindo-a como a emissão de uma declaração não querida pelo agente em seu conteúdo.
Importante perceber, ao aplicar-se o princípio da reserva mental, uma condição imprescindível: o conhecimento, pela outra parte, da vontade divergente. Além disso, a própria divergência é condição sem a qual a aplicação da reserva mental torna-se inócua. Ainda, ao colocar a reserva mental em grau de comparação com a manifestação de vontade, prevalece a última sobre a primeira. Em outras palavras, para que a intenção resguardada no íntimo sobrevenha àquela observada no papel, é indispensável a prova de que ela existiu e foi conhecida pelo outro agente do acordo – fato observado nos autos em questão.