O estudo da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica exige que se conheça, primeiramente, o contexto em que se deu sua construção e necessidade. Além disso, cuida este artigo de conciliar a teoria sobre o tema à aplicação do incidente pelos Tribunais pátrios na atualidade. Assim, utilizamos como matéria-prima jurisprudencial recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Paraná, de número 0031656-56.2020.8.16.0000.
Apresentação do caso concreto
O caso, em suma, diz respeito à ação ajuizada por credores de uma sociedade que pretendiam a desconsideração da personalidade jurídica para que os sócios da empresa devedora respondessem pelo débito contraído. Utilizavam-se de dois principais eixos argumentativos: a inexistência de bens penhoráveis e o suposto encerramento irregular da empresa. Uma vez provido esse pedido da parte, a consequência seria, por óbvio, a afetação de patrimônio dos sócios.
No entanto, de acordo com a corte, para a incidência do instituto da desconsideração são necessárias provas do abuso de personalidade, nos termos do artigo 50 do Código Civil, o que não fora observado no caso em voga. As duas evidências argumentativas, segundo o entendimento exarado na decisão em debate, não constroem, por si, a deturpação da personalidade jurídica da ré, razão pela qual sua autonomia deverá ser mantida.
A partir dessa decisão, seguimos em uma análise sobre o incidente de desconsideração, suas origens e peculiaridades, além de sua relevância no nosso ordenamento jurídico.
Personalidade jurídica: criação e relevância para a atividade econômica
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também conhecida como Disregard Doctrine, está intrinsecamente ligada à ideia de construção da pessoa jurídica, um instituto revolucionário para o direito empresarial e adicionado ao ordenamento brasileiro em 1916, no artigo 20 do Código Civil, com o seguinte texto: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”.
Por meio dessa distinção, separou-se o patrimônio do ente jurídico do patrimônio da pessoa física, competindo a cada núcleo as responsabilidades contraídas pela sua respectiva vontade de legalmente se relacionar e contratar. Conforme destaca Nathalia Vernet de Borba Carvalho, a finalidade de tal separação, quando instituída, foi “tornar a atividade empresarial convidativa, factível e, sobretudo, segura, estimulando a sua prática, uma vez que, ao conceder à pessoa jurídica autonomia em relação aos membros que a compõem, minimiza os riscos advindos do negócio, avalizando a limitação da responsabilidade pessoal dos sócios pelas dívidas da empresa”.
A consolidação da personalidade jurídica, portanto, incentivou o amadurecimento do mercado, o fomento às práticas econômicas e norteou as decisões jurídicas sobre os limites da responsabilidade empresarial e física. Esse é o núcleo básico do instituto, que, como se sabe, foi por vezes desvirtuado na intenção de fraudar credores e praticar atos incompatíveis com sua finalidade, razão pela qual cunhou-se a diregard doctrine.
Teoria da desconsideração da personalidade jurídica
Por ser um vasto e dinâmico campo, a atividade econômica apresenta ao legislador nuances passíveis de serem regularizadas com novas leis e, ao jurista, realidades a serem pacificadas com novas jurisprudências. Assim, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visando coibir as deturpações relacionais, consolidou-se em nosso ordenamento como uma forma de regulação da atividade empresarial e outros agrupamentos, e de proteção aos credores – preocupações essas mais eminentemente destacadas a partir do século XIX.
Em 1897, o caso inglês Salomon vs. Salomon e Co. fora julgado e firmou-se como o início da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. A partir de então, a doutrina ganhou corpo em posteriores decisões similares e em leis que a incluiram no rol do ordenamento jurídico.
Segundo destaca João Casillo, os partidários da teoria afirmam que, quando a forma da pessoa jurídica, ou a própria pessoa jurídica, é utilizada com o “intuito de fugir às finalidades impostas pelo Direito, deve ser, então, ‘desconsiderada’, ou melhor, não deve ser levada em conta sua existência, para, na decisão do caso que lhe é apresentado, o julgador decidir como se, na espécie, a pessoa jurídica não existisse, imputando as responsabilidades aos seus sócios ou, mesmo, a outra pessoa jurídica de que se tenha utilizado ou, mesmo, se escondido sob a forma daquela primeira”. Márcia Friegeri ainda assevera que o objetivo primeiro da desconsideração é proteger a atividade empresarial da prática de fraudes e de abusos praticados por meio de uma pessoa jurídica desvirtuada da função principal desse instituto. Assim se provando, o juiz deverá ignorar a autonomia apregoada em lei a essa personalidade e aplicar aos sócios as obrigações legais ou contratuais das quais eles tentaram se eximir ou se furtar.