Em decisão proferida no último dia 12 de setembro, o Superior Tribunal de Justiça fixou um importante precedente quanto à desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicação inversa. Determinou-se, por votação colegiada, que o sócio devedor possui legitimidade e interesse recursal para impugnar a decisão que deferiu o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica das empresas de que participa.
Desconsideração da personalidade jurídica e desconsideração inversa
Conforme destacado em artigo publicado pelo escritório, a personalidade jurídica atribui condição específica às entidades e associações. Esse instituto surgiu para estabelecer características próprias a esses tipos de organizações e diferenciá-las, inclusive patrimonialmente, dos seus integrantes. A incomunicabilidade dos patrimônios, portanto, foi uma preocupação expressa do legislador, positivada no art. 1024 do Código Civil, onde ficou determinado que “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.
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A independência dos bens é o princípio básico da separação patrimonial. No entanto, para evitar que manobras fraudulentas de sócios sejam acobertadas pela separação, doutrina e jurisprudência lapidaram a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, prática excepcional que responsabiliza os sócios, gerentes, administradores e/ou representantes legais por abusos e confusões patrimoniais. Importante destacar que a desconsideração “quebra” com a ordem de responsabilização e captura patrimonial, podendo o sócio ser implicado no processo antes do esgotamento dos bens da sociedade, razão pela qual a teoria é uma via incomum.
O fluxo “natural” da desconsideração, portanto, parte da empresa para se atingir o sócio. A desconsideração inversa, contudo, parte do sócio para se atingir a empresa da qual ele faz parte. Em definição sucinta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, a desconsideração inversa ou invertida torna possível responsabilizar a empresa pelas dívidas contraídas por seus sócios. A fundamentação para a desconsideração inversa é a mesma da desconsideração, qual seja, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.
Assim como na desconsideração da personalidade jurídica, a desconsideração inversa deve ser tratada como uma medida excepcional e restrita aos casos em que se comprove a administração turva do próprio patrimônio, com intuito lesivo de esconder os bens do acervo pessoal no rol de bens da empresa, “a fim de esquivar-se de seus compromissos financeiros”.
Resumo do caso e efeitos da decisão
O sócio devedor, a quem foi aplicada a desconsideração inversa da personalidade jurídica – atingindo, portanto, a empresa da qual ele é sócio a fim de sanar a dívida – contestou a desconsideração perante a instância competente. Diante do não conhecimento do seu recurso pelo tribunal, sob o fundamento de que o sócio devedor não teria legitimidade nem interesse recursal para tanto, o réu recorreu ao STJ.
Ao proferir seu voto no recurso, o ministro Marco Aurélio Bellizze observou que, pela literalidade da lei, na desconsideração da personalidade jurídica, apenas a parte cujo patrimônio será alcançado é que integrará o polo passivo do incidente. Ou seja, o sócio ou a empresa, na desconsideração inversa, é quem deverão figurar como demandados, não sendo exigido, em princípio, a intimação do devedor.
No entanto, o relator ressaltou que, em casos semelhantes, a doutrina considera evidente o interesse jurídico do devedor originário, aquele de quem emanou a desconsideração. Ainda nas palavras do ministro, “se o patrimônio da empresa for utilizado para a quitação da dívida, poderá haver ação de regresso, situação com potencial de influir na relação entre os sócios, levando à quebra da affectio societatis – vínculo psicológico entre os integrantes de uma sociedade, cuja perda conduz à sua dissolução parcial ou integral”.
Condição do devedor no processo de desconsideração inversa
De acordo com Belizze, em destaque no site do STJ, mesmo que o devedor não figure como litisconsorte no incidente de desconsideração, ele poderá intervir no feito na condição de assistente, dado o seu manifesto interesse jurídico. Nas palavras do relator, são nítidos “o interesse e a legitimidade do sócio devedor tanto para figurar no polo passivo do incidente de desconsideração inversa quanto para impugnar a decisão que lhe ponha fim – seja na condição de parte vencida, seja na condição de terceiro em relação ao incidente –, em interpretação dos artigos 135 e 996 do Código de Processo Civil de 2015”.