Conflito Societário – Qualicorp

A Qualicorp, grupo empresarial líder na comercialização e administração de planos de saúde coletivos, protagonizou nesta semana uma vertiginosa queda no mercado de ações. Iniciada na última segunda-feira, dia 01, os papéis da empresa caíram 29,37% e foram a R$ 11,64, com um volume de R$ 469,3 milhões – 12 vezes os R$ 39,2 milhões médios negociados nos últimos 21 pregões. O grupo assistiu seu valor regredir em mais de R$ 1,3 bilhão, chegando a R$ 3,3 bilhões.

Tal involução ocorreu após a administradora anunciar a assinatura de um contrato com o fundador e CEO da companhia, José Seripieri Filho, no qual este firmava o compromisso de não vender suas ações e de não competir com os negócios da Qualicorp. Em contrapartida ao lockup, a Qualicorp se comprometeu a pagar uma indenização de R$ 150 milhões ao fundador.

Governança corporativa em xeque: acordo sem a participação dos sócios

A decisão foi tomada de forma unânime pelo Conselho de Administração, que a justificou com base em um alinhamento estratégico futuro com o acionista beneficiado.

Vale dizer, contudo, que o acionista beneficiado com a decisão tomada pelo conselho de administração, além de ser o CEO da companhia, também ocupa uma das cadeiras do conselho, muito embora não tenha votado na deliberação em comento.

Os termos genéricos da indenização, entretanto, ofenderam os outros acionistas, que já se articulam para acionar a justiça em busca de reparação, conforme se manifestou João Braga, da XP Gestão (segundo maior acionista da Qualicorp, atrás apenas de José Seripieri Filho). Ao restringir o acordo à deliberação do Conselho de Administração, isolando a Assembleia de Acionistas da ratificação do acordo, a Qualicorp feriu os princípios de governança corporativa, que preceituam o envolvimento, neste tipo de situação, dos sócios, conselho administrativo, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. Essas bases costumam sustentar a imagem da empresa perante o mercado, assim como o desprezo a elas provoca baixas no valor do grupo, levando a recomendações negativas por parte de casas de análise.

Ausência de convocação dos sócios na decisão

Dentre os poderes atribuídos à Assembleia Geral de Acionistas, está a decisão sobre atos de gestão. Em regra, a assembleia ocorre anualmente – chamada, então, de Assembleia Geral Ordinária –, mas, a qualquer momento, o Conselho pode convocar uma Assembleia Extraordinária, para além de quaisquer outras reuniões da cúpula.

A Assembleia Geral aprova relatórios de gestão e contas, aprecia a gestão e supervisão da empresa, além de ter o poder de destituir administradores ou expressar sua falta de confiança nestes. Ela ainda decide sobre a aquisição de participações societárias e autoriza atividades que possam competir com a atividade da empresa.

A transação da Qualicorp, embora não se trate de uma aquisição efetiva de papéis e por barrar apenas a virtual competição, fugiu à transparência das diretrizes do grupo – desvio refletido na depreciação do mercado – e impediu a deliberação dos sócios a respeito do assunto.

Assim, o caráter de exclusividade das tratativas entre o Conselho e o Acionista José Saripieri Filho levantou suspeitas nos demais investidores e na bolsa de valores, provocando a significativa queda nos papéis da Qualicorp. Os sócios têm questionado a natureza da indenização, suscitado dúvidas sobre a real possibilidade de saída do sócio majoritário e, o que é pior, sobre a solidez ética das partes envolvidas no acordo.

Nossa breve análise do caso

A decisão tomada pelo conselho de administração da companhia não apenas chamou a atenção dos investidores pelo fato de ter sido tomada sem que estes tivessem informações prévias sobre o seu conteúdo, mas especialmente por ser uma decisão que, amparada sob suposta base legal, demonstra que nem tudo aquilo que possui fundamento normativo, pode ser considerado equitativo para o mercado, especialmente se considerarmos que muitos dos dispositivos legais que balizam a conduta de tal órgão deliberativo possuem elevada amplitude interpretativa.

Em comunicado publicado após a repercussão que a deliberação provocou entre os acionistas, a companhia prestou esclarecimentos ao mercado, justificando sua decisão, em breve síntese, com base nos seguintes argumentos: (i) que o conselho decidiu por unanimidade e sem interferência do acionista e que tal decisão foi tomada no melhor interesse da companhia; (ii) que a decisão do conselho foi tomada após vários meses de longos debates, com a consultoria de renomados especialistas e que foram levadas em conta as práticas e referências do mercado; (iii) que o conselho entende que o valor pago ao acionista é adequado e que representa importante contribuição de valor para a companhia, na medida em que não havia mecanismo de proteção dessa natureza; (iv) que o acionista beneficiado não é controlador da empresa e não teve participação nas reuniões do conselho que definiu a contratação e, por fim (v) que o conselho de administração atuou dentro de sua competência legal.

As justificativas apresentadas pela companhia, apesar de traduzirem uma suposta regularidade sobre a decisão tomada, não convenceram os acionistas, não nos convencem e talvez também não convençam a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, que analisará a questão após provocação da XP Gestão, que busca, pela via administrativa, suspender os efeitos da deliberação do conselho de administração.

Dizer que a decisão não foi influenciada pelo acionista José Seripieri Filho é a primeira impropriedade da afirmação da Companhia. De fato, o acionista em questão, que também é membro do Conselho de Administração, não votou na deliberação em comento e não participou da Assembleia Geral Ordinária que elegeu o atual Conselho de Administração e formalmente nem poderia fazê-lo por expressa vedação contida no art. 156 da Lei 6.404/76.

No entanto, o poder de influência de qualquer acionista não se mede pela sua não participação nas votações, seja como acionista ou, como no caso em análise, na condição de membro do Conselho de Administração. Aliás, o poder de influência do acionista José Seripieri Filho nunca foi dúvida para o mercado e foi claramente refletido no Comunicado sobre transação entre partes relacionadas publicado pela Qualicorp no dia 1 de outubro de 2018. Em tal comunicado a Companhia aduz textualmente que: (i) O mercado de atuação da Companhia está em momento de forte transformação e o Conselho de Administração entendeu essencial contratar alinhamento estratégico e de longo prazo com o Acionista, fundador e principal liderança da Companhia […]; (ii) Não há terceiros na mesma situação do Acionista, que possuam o mesmo conhecimento sobre a Companhia e seu mercado de atuação.

A questão que se coloca é complexa e inovadora e alguns dizem que será um dos maiores conflitos societários dos últimos anos. Isso, em nossa opinião, decorre principalmente da dificuldade em avaliar se, de fato, a decisão tomada pelos conselheiros foi no melhor interesse da companhia. Em outras palavras, se os conselheiros realmente agiram amparados em dados consistentes e se autorizaram o pagamento da indenização a Seripieri de acordo com padrões equitativos.

Sobre este aspecto, nos chama atenção que o conselho de administração tenha tomado tal decisão alegando a necessidade de “alinhamento estratégico” com Seripieri, algo que, ao nosso ver, já decorre da condição que tal acionista ocupa como conselheiro e CEO da Companhia. Ou seja, se Seripieri tem, por imposição legal e institucional, o dever de lealdade e sigilo, por que a Companhia deve indenizá-lo para tanto?

CAMPOS (2009), discorrendo sobre o dever de lealdade, aduz que este vai muito além das hipóteses previstas nos incisos do artigo 155 da Lei de Sociedades Anônimas. Mais que isso, complementa o autor, não é possível clausular em previsões específicas todos os comportamentos positivos e negativos a serem seguidos, já que o contrato de sociedade é, por sua própria natureza, um contrato incompleto.

De fato, os administradores possuem deveres que são fixados na lei de forma genérica, mas que têm como função suprir estipulações contratuais omitidas, sendo relevante invocar sobre este ponto a teoria dos contratos incompletos desenvolvida no âmbito da doutrina law and economics.

Um contrato é inevitavelmente incompleto quando não possibilita às partes ex ante prever quais serão os desdobramentos, seja em relação às informações sobre o negócio, seja em função de uma condição que só se verificará no futuro.

As razões que conduzem à incompletude dos contratos podem ser de diversas naturezas, a mais comum está ligada ao fato de que as condições do ambiente não podem ser antecipadas ex-ante. No âmbito de tal teoria, também se colhe que no ambiente dos contratos incompletos há um fértil terreno para que se desenvolvam comportamentos oportunistas, como o que pode ter sido adotado por Seripieri no caso ora em análise.

O comportamento oportunista parte da definição de WILLIAMSON (1985). Para ele, tal comportamento é uma ação intencional “em que os agentes econômicos buscam os seus próprios interesses nas transações, agem em benefício próprio, aproveitando-se de lacunas ou omissões contratuais em detrimento dos parceiros”.

O que observamos no presente caso é que Seripieri, mesmo sem ter votado nas deliberações, mesmo não sendo acionista controlador da companhia e mesmo tendo o conselho buscado amparar sua decisão em indenizá-lo sob aspectos técnicos, colocou o conselho em posição de absoluta submissão à sua vontade, diante da premente possibilidade de sua saída da companhia e de uma suposta concorrência com os negócios da Qualicorp S.A. Assim, o que se lê da situação exposta é que Seripiere parece ter agido de forma oportunista (segundo a teoria dos contratos incompletos) e, valendo-se de sua notável influência sobre os negócios da Companhia, angariou para si os benefícios da assinatura de um contrato de não competição e lockup que lhe valerá indenização, a ser paga em uma única parcela, no considerável importe de 150 milhões de reais – livres de impostos!

A questão que procuramos analisar de forma sintética neste texto expõe a existência de inédita e indesejável fragilidade na relação existente entre administradores e acionistas, em um sistema que, apesar de contar com robusta e consistente legislação societária, convive com situações que beneficiam pequenos grupos de interesse em detrimento de um conjunto de investidores, valendo-se de lacunas legais e contratuais.

Tais comportamentos não devem estar imunes à regra de lealdade ínsita aos deveres dos administradores com a Companhia e seus acionistas e da inafastável boa-fé que sujeita todos a agirem conforme padrões de comportamentos desejáveis.

Investidores: possibilidades de reparação

O descontentamento dos acionistas não se restringe ao alto valor da indenização. Na opinião deles, não bastasse a suposta ausência de justificativa, ao se comprometer com o pagamento de somas desse porte, a Qualicorp tem por obrigação aprovar o contrato em assembleia.

Diante da reação do mercado, a expectativa dos investidores é a de que a Comissão de Valores Mobiliários (CMV) interfira na transação. A autarquia possui competência para fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários no Brasil, com poder para investigar e embargar acordos lesivos aos outros interessados.

Em suma, o objetivo é anular a indenização, reaver os R$ 150 milhões e restaurar a governança na empresa, que, somente nos últimos dias, assistiu suas ações serem rebaixadas pelo Bradesco BBI, Itaú BBA e pelo BTG Pactual.